[okfn-br] Retirada da fazer-cracia e proposta sobre a meritocracia
Andres MRM
andres em inventati.org
Sexta Agosto 28 02:26:04 UTC 2015
Estava demorando para te responder, Edgar, justamente porque tinha medo que a
conversa "filosófica" afastasse da conversa mais prática que tentei puxar,
fazendo perguntas mais diretas ao Tom. Mas como perdi a esperança que ele
responda, te respondo agora sobre a parte filosófica.
Li por cima o trecho que você citou, mas, se entendi direito, parece defender
que a igualdade de oportunidade é um princípio básico para a aplicação da
meritocracia.
O que eu estava colocando, exemplificando com o trecho tirado da Wiki sobre a
tendências à diferença de personalidade entre @ primeir@ e segund@ filh@, é
que não existe igualdade de oportunidade. Cada pessoa tem uma história tão
única que é impossível igualar as oportunidades recebidas por duas pessoas. Aí
não entra só a parte financeira, mas também de valores, exemplos,
oportunidades ocasionais, genética, etc etc etc. As vezes um pequeno
acontecimento pode levar a dezenas de outros, que levam a ainda outros e assim
definir suas motivações, visões de mundo, etc.
Dentro de toda essa complexidade, como você fala em igualdade de oportunidade?
E pior, como você fala em mérito? E ainda pior, como você ousa tentar medir
mérito?
Mesmo se você acreditar que mérito está relacionado a esforço, o quanto você
se esforça para algo também está relacionado com todas essas pequenas
experiências que compõem a sua história de vida, e que são impossíveis de
serem avaliadas ou controladas.
Logo, acho que o termo mais correto para o que a meritocracia pode tentar
almejar na prática é "desempenhocracia", como diz esse texto aqui:
http://jornalggn.com.br/fora-pauta/desvendando-a-espuma-o-enigma-da-classe-media-brasileira
(já adianto que não concordo com tudo que ele diz, apesar de concordar com
mais coisas da sequência dele:
http://jornalggn.com.br/fora-pauta/desvendando-a-espuma-ii-de-volta-ao-enigma-da-classe-media
Esse trecho, por exemplo, curti bastante:
"O “mérito”, então, não está no avaliado, e sim no avaliador. Não é algo
intrínseco aquele ou aquilo que é avaliado: ele se forma subjetivamente na
mente daquele que avalia e se objetiva no sistema (nos procedimentos e
normas) de avaliação. Portanto, contraditoriamente, o que está em jogo nas
avaliações de mérito não é o valor daquele ou daquilo que será premiado ou
punido pela meritocracia, mas os interesses, crenças, ideologias e poderes
daqueles que avaliam e do sistema de mérito que eles representam. Então, é
aí que se deve buscar a justiça, não na recompensa ou não pelo mérito."
)
Dessa forma o termo "meritocracia" me parece induzir a uma ideia enganosa,
justamente por remeter a mérito/merecimento, e não a desempenho, que como
disse, seria o único "objeto" possível de se tentar mensurar (mesmo com
imprecisão). Essa chatice com o termo pode parecer besteira, mas sinto que
seja importante para tentar desmistificar a interpretação que é dada a ele por
muita gente. Como se carregasse uma certa "justiça", o que está longe da
verdade... O próprio texto que citei antes tem um trecho legal sobre isso:
Neste sentido, no ethos meritocrático, a defesa da meritocracia como justa
é um tanto tautológica, pois para um meritocrata o conceito mesmo de
justiça está associado ao mérito: “justiça é dar a cada um conforme seu
esforço e sua capacidade”. Então, no ethos meritocrático, a questão não é
se a meritocracia levaria ou não a uma sociedade justa; o mérito mesmo é
que estaria na própria definição de justiça, e a meritocracia seria,
portanto, intrinsecamente justa.
Tendo isso em vista, não acho que nunca deva-se aplicar a "desempenhocracia".
Em algumas situações restritas, ela pode ser usada como uma ferramenta válida,
pontual. Mas não "alardeada" como um valor, como algumas pessoas defendem.
[2015-08-13 09:51] Edgar Zanella Alvarenga:
> On 13/08/2015 13:31, Andres MRM wrote:
>
> > Correndo o risco de voltar para a discussão filosófica, que era
> > justamente o
> > que estava tentando evitar... O texto que o Edgar passou defende que é
> > preciso
> > ter igualdade de oportunidade para a meritocracia valer? (porque foi
> > isso que
> > eu entendi olhando BEM por cima) A ideia que eu estava comentando,
> > representada pelo trecho que peguei da página da wiki, é que não existe
> > igualdade de oportunidade. Pequenas diferenças na vida de uma pessoa
> > (no
> > trecho fala de ser o primeiro ou segundo filho) farão com que ela tenha
> > motivações, aptidões, visões de mundo distintas, não fazendo mais
> > sentido você
> > usar a mesma métrica para pessoas distintas.
>
> Andres, o texto que eu passei não "defende" (necessariamente) nada. É um
> texto filosófico sobre o conceito que está por trás em diferentes
> cenários da idéia de meritocracia e igualdade de oportunidade. E expõe
> diversos problemas e críticas, incluindo a falta de definição de
> métricas e outros problemas com o conceito e possíveis soluções. Mas
> reitero que isso varia de situação pra situação. Se estivermos falando
> num contexto econômico os problemas e motivações são distintos do que se
> estivermos pensando em aplicar num modelo organizacional. E repito:
> meritocracia não implica verticalidade (como não implica a ausência
> dela)!
>
> Veja a relação próxima entre igualdade de oportunidade com meritocracia
> nesta seção:
>
> http://plato.stanford.edu/entries/equal-opportunity/#EquOppMer
>
> Mas ainda não ficou claro o que se tem em mente ao se propor
> meritocracia numa organização como a Open Knowledge. Pode-se estar
> pensando, por exemplo, na escolha de pessoas em cargos bem definidos
> (conselho fiscal, coordenadores de projeto, equipes atuando em projetos,
> etc). De certa forma ao se pensar nesses cargos pode-se dizer que está
> sendo definida uma hierarquia visando maximizar a eficiência/alcance dos
> objetivos comuns/bom andamento organizacional ou dos projetos. Mas a
> escolha de quem irá atuar em cada cargo pode ser realizado de forma
> horizontal, por exemplo se tivesse um sistema de votação onde todos os
> membros da organização pudessem participar. Mas daí recai na questão de
> quem é considerado "membro" e qual sistema utilizado no processo
> decisório.
>
> Entenda que por trás do conceito "igualdade de oportunidade" está a
> idéia difícil de ser alcançada na prática de que todos deverão possuir
> as mesmas oportunidades (seja pra pegarem um cargo, vaga numa empresa,
> vaga numa faculdade, etc), sem privilégios baseado em castas, grupos
> étnicos, classes sociais, relações familiares, enfim. Daí pensa-se que a
> escolha deverá ser feita apenas baseado no "mérito" que obviamente vai
> depender completamente do contexto que estiver discutindo. O grande
> problema é que, sim, pode-se cair em profecias que se auto realizam e
> acabar utilizando isso como argumento pra perpetuação de preconceitos.
> Pense por exemplo no sistema de vestibular para universidade públicas no
> Brasil. Pode-se argumentar que quem entra é escolhido pelo mérito, quem
> estuda mais, quem é mais comprometido. Mas isso desconsidera
> completamente a história, os diferentes contextos culturais e
> educacionais num país com tanta desigualdade como o Brasil. Se quiser
> ver outros bons exemplos onde o conceito meritocracia foi utilizado para
> justificar a perpetuação de preconceitos eu sugiro o livro (não só por
> isso, mas também por o livro ser excelente food for thought, mesmo que
> não concorde com tudo que ler lá) "Sapiens: A Brief History of
> Humankind" do historiador Yuval Harari, quando analisa as desigualdades
> econômicas e sociais da população negra nos EUA que persiste até hoje
> mesmo após o término da escravidão (argumenta até que aumentou!).
>
> Ou se formos pensar no contexto acadêmico, quem recebe promoções de
> cargos, verbas para projetos, bolsas etc Pode-se argumentar que
> organizações como a USP/Fapesp/CNPq fazem isso baseado no mérito
> acadêmico. Mas daí recaimos em problemas como os que o Jorge citou ou
> critérios como número de publicações/citações que geram uma dinâmica
> onde o "rico fica mais rico".
>
> Agora se formos pensar na meritocracia aplicada na escolha de cargos
> políticos. Imagine que interessante seria se as escolhas dos ministérios
> fossem realizadas baseado no histórico dos candidatos aos cargos,
> especialmente no que se refere para obter um bom desempenho ao cargo
> específico. A dinâmica seria com certeza bem distinta da atual no
> Brasil, onde pessoas "aleatórias" são escolhidas como moeda de troca de
> poder político. Não teríamos idiotas como o Feliciano no cargo de
> presidente da Comissão de Direitos Humanos por exemplo, pessoas que
> nunca fizeram um projeto na área de Esportes para o Ministério de
> Esportes, etc
>
> E por fim, pode-se argumentar que a luta por dados abertos e
> transparência no planejamento e execução orçamentária do governo, está
> fortemente ligado com o fato de querer oferecer igual oportunidade para
> qualquer membro/grupo da sociedade poder avaliar e julgar o desempenho
> governamental de forma concreta baseada no mérito, ao invés de apoiar-se
> apenas em propagandas do Estado ou dinâmicas que se assemelham a escolha
> de time de futebol (PT é ruim buuuuh! PSDB é o melhor!!!).
>
> Enfim, eu ainda acho que a discussão poderia ser mais produtiva se
> tentassemos ao menos definir brevemente no que estamos interessados em
> discutir, ao invés de ficar nessa cacofonia dissonante onde boa parte do
> resultado é apenas ruído e ninguém ouvindo ninguém.
>
> E.
>
> > Mas voltando ao ponto principal, o que estávamos aplicando desde março
> > havia
> > sido acordado coletivamente (inclusive com você, Tom) fazendo daquilo
> > um
> > consenso. Se acha que algo não deu certo, e quer mudar, acho ótimo.
> > Temos
> > sempre que rever nossas práticas e aprimorá-las. Mas o que exatamente
> > não deu
> > certo? Será que não conseguimos tratar esses pontos ao invés de romper
> > com
> > tudo ficar discutindo valores sem saber direito as implicações deles?
> >
> >
> >
> > [2015-08-13 07:50] Everton Zanella Alvarenga:
> >
> >> Olá Gustavo.
> >>
> >> Seja bem-vindo. Eu gostaria de registrar que gostei muito de sua
> >> intervenção
> >> para auxiliar na chegada de um consenso sobre o tema proposto. Essas
> >> formas de
> >> avaliação social é justamente o que acredito que podemos chegar e
> >> gostei da sua
> >> proposta em tentar achar uma intersecção.
> >>
> >> Concordo plenamente que essa leitura atual do significado de
> >> meritocracia está
> >> contaminando a discussão, por esse motivo, desde o começo, eu disse
> >> "Fica aqui
> >> a proposta para a meritocracia ser um de nossos valores como
> >> organização. E
> >> depois podemos escrever uma redação o que queremos dizer com isso, já
> >> que nem
> >> sempre ela se aplica (e. g., quando as condições iniciais e de
> >> ambiente não são
> >> de igualdade)."
> >>
> >> Desde a proposta inicial da discussão, eu alertei que a meritocracia
> >> nem sempre
> >> se aplica, citando um exemplo das desigualdades. Por isso mesmo acho a
> >> sugestão
> >> de leitura do Edgar na enciclopédia de filosofia de Stanford sobre
> >> igualdade de
> >> oportunidade é muito válida.
> >>
> >> Algumas manifestações parecem expor algo que já discutimos aqui em
> >> outros
> >> contexto, a tirania do pensamento único, muito manifestado nas últimas
> >> eleições
> >> e que resultaram numa polarização pouco salutar, cuja principal causa
> >> é, na
> >> minha opinião, a intolerância com formas diferentes de pensar.
> >>
> >> Agora temos que buscar quais seriam essas formas de recompensa diante
> >> do nosso
> >> trabalho, que deve ter um propósito mais claramente definido. Numa
> >> outra
> >> questão, que também causou divergências muito disruptivas, ficou claro
> >> que há
> >> pontos de vista diferentes sobre os rumos da organização e como ela
> >> deve ser
> >> conduzida. E teremos que aprender a trabalhar juntos com as diferenças
> >> ou cada
> >> um criar seu empreendimento, após acordado civilisadamente que
> >> discordamos.
> >>
> >> Mas o caminho é esse, busca o consenso e seu olhar mais externo trouxe
> >> luz para
> >> a discussão. Vamos tentar achar esses mecanismos que apontou e ver as
> >> vantagens
> >> e desvantagens de cada valor sendo proposto (curiosamente, ambos
> >> valores foram
> >> propostos por mim e um deles estou revendo ;).
> >>
> >> Everton
> >>
> >> Em 12 de agosto de 2015 16:43, Gustavo Sales <vatsu21 em gmail.com>
> >> escreveu:
> >>
> >> Olá, pessoas. Tudo bom?
> >>
> >> Resolvi fazer minha primeira contribuição e em tema controverso. É
> >> um risco
> >> que assumo. Afinal ainda estou tomando contato com a cultura da
> >> OK-Br.
> >>
> >> Assim, peço, antecipadamente, desculpas caso minha intenção em
> >> colaborar
> >> esteja fora do momento e/ou do foro adequados.
> >>
> >> Ao que puder perceber, há por um lado a preocupação com uma
> >> melhoria na
> >> governança e por outro o receio que questões levantadas na
> >> sociedade sobre
> >> a meritocracia contaminem a organização.
> >>
> >> Gostaria de dizer que, com o olhar ainda não enviesado pela
> >> política
> >> organizacional, vejo uma intersecção interessante que talvez possa
> >> ser
> >> explorada.
> >>
> >> Com certeza, a fazer-cracia é importante para que as iniciativas
> >> tomem
> >> forma com o mínimo de "fricção" organizacional possível. Por outro
> >> lado,
> >> talvez os resultados do que se faz podem não ser adequados àquilo
> >> que a
> >> organização necessita. Se fiz uma leitura correta e esse é o
> >> problema de
> >> governança que se apresenta, acredito ser possível explorar formas
> >> de haver
> >> controle social dos resultados apresentados. Em outras palavras,
> >> não
> >> haveria motivo para ferir a fazer-cracia em si, mas sim a adição
> >> de
> >> mecanismo para avaliação das ações.
> >>
> >> Assim, as "recompensas" organizacionais não seriam apenas pautadas
> >> em quem
> >> mais fez, como seria na "fazer-cracia", mas também seriam pautadas
> >> na
> >> avaliação social das ações (pode-se argumentar que há análise de
> >> mérito
> >> neste quesito).
> >>
> >> Sendo assim, não haveria imposição alguma à livre-iniciativa
> >> dentro da
> >> organização, mas estaria-se endereçando a preocupação com a
> >> governança.
> >>
> >> Uma possível forma de implementação, seria uma avaliação das ações
> >> por
> >> parte de todos envolvidos em dada ação. Poderia-se implementar tal
> >> avaliação em ambiente eletrônico, com indicadores como, por
> >> exemplo:
> >> aderência aos objetivos da OK-Br, observação de prazos negociados,
> >> atingimento das metas estabelecidas pelo grupo participante da
> >> ação, etc.
> >> Tal avaliação poderia ser 360 graus.
> >>
> >> O que acham? Acreditam que em algum ponto deste email há algo que
> >> possa ser
> >> expandindo para a construção de consenso mínimo sobre o tema?
> >>
> >> Muito obrigado pela paciência com o novato aqui :D
> >>
> >> Forte abraço,
> >>
> >> Gustavo
> >>
> >>
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